Vamos lá!

Acredito em um livro como creio nos sonhos ,

dedico-me à troca de pensamentos como às pessoas que amo



terça-feira, 16 de novembro de 2010

Exercício de revisão para avaliação do 4 bimestre

Queridos estudantes,
segue o exercício de revisão para a prova do 4 bimestre das três séries, como combinado em aula. Na próxima semana tiraremos as dúvidas, portanto estudem para o nosso trabalho ser mais eficaz.
Bom estudo.



EXERCÍCIO DE REVISÃO PARA A PROVA 4 BIMESTRE

1 ANO

1) O Etnocentrismo e o racismo são fatos sociais? Justifique detalhadamente sua resposta.
2) O ser humano é só um produto da Cultura ou é capaz também de transformá-la?
3) A Cultura é dinâmica e diversa ou estática e homogênea?
4) Qual é a importância de entendermos as transformações e heterogeneidades sociais?
5) Como são formadas nossas identidades? São inatas ou construídas socialmente?
6) Qual a necessidade de preservarmos e respeitarmos nossa cultura e a dos outros?
7) O que é difusão cultural e sincretismo? Qual a sua relevância? Existe cultura 100% pura?
8) O que tem no programa do PAS-UNB sobre construção da identidade pela cultura? Qual a postura deste frente à diversidade cultural?
9) O machismo e o feminismo são tendências naturais de homens e mulheres, respectivamente, ou construções sociais difusas no seio social?
10) Nossa sociedade é justa e igualitária ou ainda persistem discriminações e desigualdade? O que os textos do blog ( Eu, homem correto e Se os homens menstruassem) apresentam sobre isto? Que postura devemos ter frente a estas questões?


2 ANO

1) Como se dá o processo de concentração de renda e quais as suas repercussões?
2) Quais as soluções dadas pelo capitalismo internacional para as crises de superprodução, recorrentes neste sistema? Quais as conseqüências para os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento?
3) Qual o papel da Igreja nas colonizações?
4) Em que reside a oposição entre economia planificada e liberalismo econômico? Qual deixa a sociedade mais suscetível às crises econômicas?
6) Como se deu a industrialização brasileira? Como se deu o processo de dependência do Brasil?
7) Qual a influência das multinacionais no Brasil?
8) Como se deu o milagre econômico na época da ditadura e quais as conseqüências deste processo?
9) Como se dá e quais as conseqüências do imperialismo cultural? Qual o papel da indústria cultural nisto?
10) Quais as conseqüências da alienação no consumo e por que ela acontece? Qual o papel da mídia neste sentido?
11) Por que o racismo e o machismo se perpetuam até hoje? Qual o papel da indústria cultural neste sentido? O que os textos do blog nos levam a refletir sobre isto?
12) O que é filtro de carícia e qual o papel das instituições sociais na formação deste filtro?
13) O que é bateria de carícias e como podemos mantê-la sempre carregada para mantermos uma vida saudável.
14) Como o capitalismo consegue se reproduzir? Qual o papel das instituições ideológicas?


3 ANO

1)     A oposição INDIVÍDUO X SOCIEDADE sempre existiu? Quando esta oposição surge e por quê? O que isto pode ter a ver com profissões?
2)     Qual a relação que Elias faz entre o processo civilizador e o conceito de  “estátuas pensantes”? O que esta discussão tem a ver com participação política e profissões?
3)     Quais as repercussões, para a juventude, de uma formação contraditória como a que ocorre em nossa sociedade?
4)     De onde originou a nossa noção de democracia e o conceito de maioria?
5)     O que significa, politicamente, o conceito de minorias?
6)     De onde originou nossa noção de igualdade e como ela se desenvolveu ao longo da história da humanidade?
7)     Existe neutralidade política na História? Qual a importância política do discurso histórico?
8)     Quais as conseqüências do Populismo para os movimentos sociais e a participação política?
9)     Que relações podemos traçar entre os movimentos sociais, democracia e cidadania? Eles contribuem ou atrapalham para as duas últimas? Por que?
10)O que uma educação para a política deve estimular e valorizar?
11)As disputas e os dissensos que fazem parte da política são importantes para a democracia? Qual a diferença entre ser pacífico e ser passivo? Qual das duas posturas ajudam a democracia/ cidadania e qual atrapalha?
12)Quais foram a 4 fases da formação da identidade brasileira? Em qual fase os movimentos sociais tiveram maior proeminência?
13)O que os textos do blog ( Eu, homem correto e Se os homens menstruassem) nos fazem refletir sobre os preconceitos e estigmas reproduzidos até hoje sobre negros e mulheres?
14)O que o Manifesto Comunista de Marx e Engels fala sobre identidade coletiva e organização política de trabalhadores? Quais as repercussões sociais deste manifesto?

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Recuperação paralela do 4 bimestre

Queridos estudantes,

segue os detalhes da recuperação paralela. Neste bimestre, somete aqueles que necessitam mais de 6,0 pontos para totalizar 20,0 pontos anuais poderão fazer o trabalho, valendo até 3,0 pontos a mais. Agora, lembrem-se que esta avaliação extra é só uma ajuda, o que vai fazer diferença é sua dedicação nesta reta final: sua presença (1,0), participação em aula (0,2 cada), os relatórios críticos diários (0,2 cada), o trabalho de grupo (3,0), a Expofreire (1,0) e a avaliação objetiva final (3,0). Procure ler todos os textos do blog, além dos indicados em aula. Isto qualificará sua participação, melhorando a compreensão e os resultados finais.
Bom estudo!


RECUPERAÇÃO PARALELA 4 BIMESTRE


SIGA OS PASSOS DESCRITOS DETALHADAMENTE:

1)                           Escolha uma fato social (geral, exterior e coercitivo) para estudar e leia, pelo menos, um livro sobre o assunto. Sugiro um livro da COLEÇÃO PRIMEIROS PASSOS, que são abordagens históricas, culturais e sociológicas de diversos assuntos, explicados de maneira acadêmica, porém didática. Os alunos especiais, atendidos pela sala de recursos, podem escolher qualquer livro, inclusive romance infanto-juvenil, desde que analisem a moral social da estória.
2)                           Mostre o livro à professora para que seja analisado, liberado para o trabalho e registrado por ela. O mesmo livro não pode ser escolhido por alunos da mesma turma.
3)                           Faça uma resenha crítica do livro. Na introdução, fale um pouco do autor, o contexto em que escreveu e por que se interessou por este tema. No desenvolvimento, faça um resumo com suas próprias palavras sobre os pontos centrais trabalhados no livro. Na conclusão, comente o que mais gostou e o que menos gostou da leitura e por que; se houve algo que discordou ou concordou e por que; por fim diga o que esta pesquisa lhe acrescentou em sua vida pessoal e na sua compreensão social. Entregue até o dia: 01-12-2010, para a professora Shirlei.Valerá até 1,5 pontos (extra).
4)                           Prepare uma apresentação oral com cerca de 5 min onde você expressaria de forma mais criativa e autêntica possível o que você aprendeu sobre o tema escolhido. Valerá 1,5 pontos (extra). Você pode fazer cartaz, trazer música ou poema para auxiliá-lo na apresentação. Traga o livro lido para mostrar à professora no dia da apresentação. As apresentações serão feitas por série, seguindo o cronograma abaixo:

1ANO e 2 ANO: 06-12-2010 ( de 7h30min às 12h)
3 ANO: 07-12-2010 ( de 10h30min às 12h15min)


terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Difusão da Cultura - texto 1 ano

Queridos estudantes,
o texto que segue é mais voltado para o programa do 1 ano. Trata-se de um conceito antropológico importante, rapidamente explicado. Depois, a partir de uma crônica, traz a discussão sobre os preconceitos e o ridículo dos purismos. Este texto será muito útil nas aulas desta semana e também cobrado na avaliação final.
Boa  leitura
A DIFUSÃO DA CULTURA
            Não resta dúvida que grande parte dos padrões culturais de um dado sistema não foram criados por um processo autóctone, foram copiados de outros sistemas culturais. A esses empréstimos culturais a antropologia denomina difusão. Os antropólogos estão convencidos de que, sem a difusão, são seria possível o grande desenvolvimento atual da humanidade. Nas primeiras décadas deste século duas escolas antropológicas (uma inglesa, outra alemã), denominadas difusionistas, tentaram analisar esse processo. O erro de ambas foi o de superestimar a importância da difusão, esse mais flagrante no caso do difusionismo inglês que advogava a tese de que todo o processo de difusão originou-se no velho Egito.
            Mas deixando de lado o exagero difusionista, e mesmo considerando a importância das invenções simultâneas (isto é, invenções de um mesmo objeto que ocorreram inúmeras vezes em povos de culturas diferentes situados nas diversas regiões do globo), não poderíamos ignorar o papel da difusão cultural.
            Numa época em que os norte-americanos viviam um grande desenvolvimento material e os seus sentimentos nacionalistas faziam crer que grande parte desse progresso era resultado de um esforço autóctone, o antropólogo Ralfh Linton escreveu um admirável texto sobre o começo do dia do homem americano:
            “O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
            Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
            De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na china. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria prima o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple, inventado pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de uma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no Norte da Europa.
            Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, habito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virginia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano”.[1]


[1] Ralph Linton, 3ed,1959, pp.355-56.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Textos 4 bimestre 2010 - todas as turmas

Queridos estudantes,
abaixo seguem 2 textos para serem comentados por vocês. O primeiro trata-se mais da questão dos preconceito de classe e de cor. O segundo é uma brincadeira sobre os discursos construídos acerca dos sexos. ´Discutiremos estes textos nas próximas aulas, relacionando com os eventos que aconteceram na escola, os filmes exibidos e os seguintes tópicos para cada série:
1 ANO: preconceito, violência, tolerância sócio-cultural, perspectivas sócio-culturais diversas.
2 ANO: preconceito de classe, raça e gênero, legado sócio-histórico, ideologia, contra-ideologia, discursos reproduzidos pela indústria cultural.
3 ANO: voz sequestrada X movimentos sociais. Os discursos como instrumentos de poder. Tradição discursiva-política brasileira legado e transformações.
TEXTO 1 -
Eu, Homem Correto
            Acabei de escovar os dentes e enxagüei, bem enxaguada, a boca. Coloquei a escova e a pasta dental na mala e puxei o zíper. Conferi: tudo em ordem. Os documentos no bolso interno esquerdo do paletó, o pente no direito e no bolso detrás da calça, a carteira com dinheiro. Um bolso com botão bem resistente, que abotoa sobre uma casa pequena, quase pequena demais para ele: difícil de abotoar e mais difícil ainda de desabotoar. O chaveiro, bem preso na presilha da calça, debaixo da cinta e enfiado no bolsinho dos níqueis. Os sapatos bem amarrados. Olhei: faltava um tanto de graxa neles. E brilho. Detesto andar de sapatos sujos. Puxei um pedaço da colcha que cobria a cama e lustrei o sapato. A poeira vermelha foi ficando no tecido azulado. O sapato só mais ou menos, para chegar no ponto ainda precisava de graxa e um bom lustro de escova. Na colcha ficara uma mancha escura e avermelhada, mais de palmo, mas não tinha importância, até melhor: desse jeito a dona da pensão era obrigada a mandar lavá-la, ela estava mesmo precisando, malcheirosa.
            Tudo em ordem. Apanhei a maleta, o mostruário e, saí para o corredor. Caminhei até a portaria e não encontrei ninguém. O balcão da recepção estava vazio. Esperei um pouco, cinco minutos talvez, e não apareceu pessoa alguma. Levemente, dei dois tapas sobre a tábua do balcão, esperando despertar a atenção da velha ou de alguma empregadinha. Sobre o balcão, o livro de registro de hóspedes estava aberto e eu li meu nome e notei que nos últimos três dias somente eu fora registrado. Fiquei imaginando que todos os outros hóspedes que encontrei nos corredores e no refeitório eram moradores permanentes, registrados há muito tempo. Bati novamente no balcão enquanto procurava uma campainha, dessas que sempre existem em recepção de hotéis e pensões. Não havia nenhuma. Olhei o relógio. Faltava menos de meia hora para sair o ônibus, se a empresa fosse pontual. Bati novamente, com mais força e só então a velha apareceu no corredor da cozinha, enxugando as mãos num pano de prato. Cumprimentei-a, pedi a conta, paguei. Enquanto saía, levando a mala e o mostruário, notei que ela enfiava o dinheiro no seio. Me desagradou muito aquela pensão sem nem caixa registradora.
            O ponto do ônibus não era longe, só atravessar a praça, defronte à igreja e ficar na porta, do bar. Já havia muita gente ali, esperando. Coloquei a mala e o mostruário no chão, junto à parede. Tirei do bolsinho do paletó a minha passagem, comprada de véspera e conferi o lugar. Número seis, segundo banco atrás do motorista, lado do corredor, onde eu poderia esticar as pernas à vontade, enquanto controlava a estrada, longe da poeira dos últimos lugares. Sempre que a gente se senta um pouco mais atrás, nos ônibus que rodam por estradas de terra, come um poeirão danado. É só o ônibus parar e o pó levanta-se, uma nuvem opaca, e vem por trás, entrando em cada janela aberta, em cada fresta de vidro e sufoca os pulmões da gente. Por isso sempre mantive o meu limpo hábito de reservar sempre o bilhete número seis. Nem tão atrás que empoeire tanto, nem tão à frente que o zoar do motor não deixe a gente dormir.
            Eu havia esquecido o meu guarda-pó de linho que sempre trazia nessas viagens ao interior, quando podia contar com poeira certa, por isso não vestira meu terno completo. Estava com o velho paletó cinza e a calça azul-marinho que usava quando tinha que visitar alguma fazenda, oferecendo meus produtos. A camisa, não houve jeito, era a branca mesmo. Não coloquei gravata, era estragá-la na certeza.
            O ônibus ainda demoraria um pouco a encostar. O dia ia pela sua metade, um pouco além das duas horas. Entrei no bar cheio de gente. A mala e o mostruário pesavam bastante. Coloquei-os no chão e pedi um guaraná e já bebia quando me deu vontade de comer um quindim. Mastiguei devagar.
            Pedi ao rapaz do bar que olhasse pela mala e pelo mostruário e fui ao mictório. A urina demorou a vir. Nas paredes uma porção de frases e versos escritos, frases e versos que eu fiquei lendo enquanto esperava a urina e depois enquanto mijava. Saí e fiquei encostado na porta, palitando os dentes. Não havia nenhum lugar vago nos dois bancos de madeira, cheios de mulheres e suas crianças. Já estava ficando cansado, o palito amolecera e a ponta se abrira num pequeno feixe de farpas macias, quando o ônibus apontou no começo da rua, no fim da praça. Olhei o relógio. Estava na hora, o chofer fora muito bem pontual. Isso me deixou contente, o Brasil progredia mesmo. Cuspi fora o palito, cuspi um pouco do gostinho de madeira que me ficara na boca e me aprumei. As mulheres viram também o ônibus e já se levantavam, barulhentas, chamando os filhos, pondo uma urgência medonha em tudo. O ônibus encostou. Abriu-se a porta com um sonoro chiado que me fez lembrar um peido. O cobrador desceu, moreno, magro e sorridente. Entrou no bar. O motorista saltou em seguida e foi tomar seu cafezinho no balcão. Olhei outra vez minha passagem. Número seis. Reservada. Comprada com bastante antecedência. Deixei que as mulheres com as crianças entrassem antes. O cobrador voltou e começou a guardar as malas. Entreguei-lhe minha maleta e o mostruário. Ele devolveu-me os canhotos do talão de bagagem que colara nelas. Fiquei esperando para ver em qual compartimento ele iria guardá-las. Não queria confusão com minhas malas e podia esperar enquanto os outros passageiros se atropelavam na porta do ônibus, porque eu tinha meu lugar reservado, banco número seis, desde a véspera.
            Fui um dos últimos a entrar e o ônibus não estava cheio.
            Parei um pouquinho na porta, trepado no segundo degrau e cumprimentei o motorista que ajeitava dois pacotes no lado do motor, junto ao banco. Para minha surpresa o chão estava limpo e um cheirinho de creolina indicava que ele fora lavado há pouco tempo. Uma boa empresa de ônibus aquela ali, sem dúvidas nem sombras. Procurei o meu lugar, número seis. No número cinco estava sentado um senhor bem vestido, o terno azul-marinho novo, os cabelos brancos e um curativo sobre o olho esquerdo. Achei que seria um bom companheiro de viagem. Pedi licença e sentei-me na ponta do banco estofado, arregaçando um pouco a calça para que não me surgissem aquelas joelheiras deselegantes que amarrotam o tecido e causam péssima impressão, destruindo os vincos. Uma coisa que eu não suporto são roupas mal passadas, com o vinco torto ou sem vincos. Acomodei-me e enquanto esperava a partida procurei conhecer e me apresentar no meu companheiro de banco. Ele foi muito gentil, pegou-me na mão, apresentou-se. Deixei para mais tarde a conversa que principiávamos a entabular, porque queria examinar os outros passageiros com meu vagar.
            No banco da frente, o primeiro, atrás do motorista, na mesma fileira em que eu estava, dois boiadeiros, as botas cheias de barro, falam em voz baixa, os chapéus descansando no colo. Decerto andavam olhando gado, comprando. Estiquei um pouquinho o pescoço para o lado a fim de ver bem o rosto deles. Os dois estavam com a barba crescida e pareciam cansados. Achei melhor não puxar conversa.
            No primeiro banco do outro lado, aquele que fica sozinho lá na frente, antes da porta, ao lado do motorista, o cobrador mexia com um bloquinho de passagens e ajeitava um pequeno maço de notas miúdas para o troco. Estava muito entretido em sua obrigação para responder a qualquer cumprimento meu.
            Logo depois da porta, ainda do outro lado do ônibus, sentava-se uma velha gorda, junto à janela. Um pouco longe dela, no mesmo banco, um negro.
            Virei-me um pouco e pude notar bem o casal de meia-idade que estava sentado no segundo banco, na minha direção. Pareciam distintos, razoavelmente bem arrumados e olhavam também para fora, dizendo adeus a algumas pessoas.
            Virei o pescoço mais ainda. E vi outro casal, duas mulheres e várias crianças que choramingavam lá atrás, perto da cozinha, aquele banco comprido que é o último do ônibus. Atrás de mim, nos assentos do meu lado foi mais difícil de olhar. Disfarcei, levantei-me e fingi que arranjava um pacote no guarda-volumes de cordinha. Pude ver que apenas três bancos estavam ocupados. E me pareceu que eram ocupados por roceiros, suas mulheres e filhos.
            Sentei-me novamente e olhei o relógio. Estava passando da hora. Fiquei desgostoso. Perguntei ao motorista, com muito jeito, se ia demorar muito para sair. Ele disse que não, só estava esperando a professora, ela já até vinha vindo. Disse que tirava a diferença depois. Comentei com o senhor do meu lado que isso não era direito. Mas fiquei esperando sentado que outra coisa não me competia.
            Não demorou nada e a professora chegou. Muito alegre, sorrindo, esbaforida, chegou correndo e trazia pacote de cadernos nos braços e uma grande bolsa de couro pendurada no ombro. Era muito alegre mesmo. Subiu depressa, o cobrador saiu ligeiro do banco onde estava e cedeu o lugar para ela. O motorista, rindo, cumprimentou-a e deu a partida no ônibus. Devagarzinho fomos deixando a praça, descemos uma rua estreita, passamos em frente ao circo que estava sendo desmontado. A professorinha falava alto, exuberante, e sua voz sobressaía-se até mesmo ao ronco tremido do motor. Eu estava distraído, os olhos andando à toa, quando percebi que o negro do primeiro banco inclinava-se para o lado e procurava olhar melhor a professora. Achei esquisito. Meu companheiro comentou sobre um novo posto de gasolina que estavam construindo na entrada da cidade e eu já podia avistar. Estava mesmo quase pronto e a parede inteiramente azulejada deveria ter custado uma fortuna. O ônibus parou bem na frente do posto e eu pude vê-lo direito. Duas mulheres com suas malas e sacolas entraram. O cobrador estava lá atrás e veio vindo para ajudar, mas o negro levantou rápido, pegou as sacolas e auxiliou as duas mulheres que eram bem velhas e tiveram dificuldade em subir os altos degraus. Enquanto ele ajeitava as bolsas, notei que não desgrudava os olhos da professorinha que voltara-se no banco e falava com uma das velhas, sempre com seus bonitos dentes clareando o sorriso. Compreendi logo que era professora de escolinha rural e que andava sempre naquele ônibus, por isso todos a conheciam tão bem.
            Quando o ônibus entrou na estrada os passageiros conversavam animados, mas a professora começara a corrigir os cadernos com um grosso lápis. Comentei com meu companheiro de banco o interesse do negro pela professora. Ele reprovou comigo, essa gente nunca sabe o seu lugar. Não que ele tivesse preconceitos, corno eu também nunca os tive, mas o negro estava até descalço.
            Uma certa hora a professora ajeitou-se no banco, virando as pernas para fora, encontrando melhor posição para a correção dos cadernos. Com o movimento o vestido subiu um pouco, mostrando até mais em cima, um pedaço deslumbrante de coxas claras. Eram pernas lisas e certas e pareciam rijas como boa madeira de lei. O negro estava de olho. Eu não podia ver-lhe os olhos, mas pude adivinhar muito bem a gula que ia por eles. Meu companheiro de banco entortou o corpo e olhou. Concordou comigo que as pernas eram das melhores, mais gostosas, e que o negro era um sem-vergonha. Logo-logo a professora vai estar mostrando até as calcinhas, desse jeito. E aí o negro enlouquece. Confesso que a vista daquelas pernas me perturbou um pouco, procurei conversar. Os dois boiadeiros do banco da frente estavam dormindo.
            Puxaram a campainha e o ônibus parou. Um casal levantou-se, a mulher com grande dificuldade carregava um bebê envolto em cueiros. O cobrador, parado na porta, deu o troco ao homem e ajudou a senhora a descer. Quando o ônibus recomeçou a andar ele foi cobrando as passagens de banco em banco. Mostrei a minha, reservada com boa antecedência, ele apanhou-a e fez nela dois buraquinhos redondos com seu alicate de picotar. O negro tirou o dinheiro do bolso e pagou, um dinheiro amassado e ensebado, quase a conta certa. Eu fiquei olhando o pé dele: o dedão tinha tinhas unhas pretas e gretadas. Me deu vontade de ver como é que era a mão dele. Demorei um pouco, porque ele sempre mantinha as mãos juntas, enfiadas no meio das pernas. As unhas da mão dele pareciam as unhas do pé. Tão pretas, tão sujas. Falei com meu companheiro de viagem sobre isso, como a gente conhece os outros pelas unhas da mão. Seus hábitos, seu coração. Notei nele uma rápida reação, um movimento ligeiro que tinha a intenção de passar desapercebido, procurando com a ponta dos olhos a ponta dos dedos. As unhas dele estavam cortadas e limpas, eu já havia notado isso, senão não teria comentado. Eu também olhei para as minhas unhas, embora soubesse que elas estavam limpas, lustrosas, curtas e sem cutículas, como sempre.
            O ônibus ia indo. A professorinha continuava corrigindo os cadernos e voltara as pernas para dentro do banco, de forma que já não se podia mais ver suas macias coxas. Comentei isso com o velho senhor e ficamos imaginando o desespero do negro, que perdera seu espetáculo. Eu estava pensando que tinha de engraxar os sapatos logo que chegasse na rodoviária de São Paulo, pois seria muito desagradável aparecer ao Gerente de Vendas com os sapatos empoeirados. Ele era um sujeito muito fino, certamente nunca iria dizer nada, assim direto, assim específico. Ele apenas exigia apresentação impecável e eu achava isso assim muito certo. Mas eu precisava mesmo engraxar os sapatos porque, como as unhas, eles são o melhor espelho do que é um homem.
            Eu estava pensando nisso, o ônibus rodava pela estrada vermelha, quando o negro levantou-se e foi falar qualquer coisa ao motorista. Como ele falou muito baixo eu não pude escutar o que dizia, embora tivesse me concentrado em grandes ouvidos. O que eu pude notar e o meu companheiro de banco notou também quando chamei a atenção dele, foi que o negro falava ao motorista mas tinha os olhos postos na professora que continuava com seu trabalho, apesar dos balanços e sacolejos do ônibus. O motorista respondeu qualquer coisa e o negro sentou-se novamente.
            O balançar e trepidar do ônibus na estrada de terra começou a me enjoar. O asfalto ainda demoraria compridos quilômetros.
            O diabo do negro não parava quieto. De vez em quando levantava-se, as mãos apoiadas nos suportes do guarda-volumes, e olhava para os dois lados da estrada, como se estivesse tentando reconhecer onde o ônibus ia passando. Aí então eu pude vê-lo com calma, analisar bem analisado as feições da cara. dos olhos, da boca. A boca nascia de um beiço grosso, pendente, roxo, e acabava num outro beiço menor, tão curto que quase encostava no nariz. E o nariz era mais chato que o normal dos negros, e bem perto da narina esquerda tinha um calombo avermelhado que me fez lembrar em bernes. Os olhos eram de quem bebe muito, amarelados, estriados de sangue. Um negro muito feio mesmo. Depois ele sentou-se e ficou quieto.
            O calorzinho gostoso do meio da tarde, a modorra suave provocada pelo ronronar do motor e o sono fundo dos dois boiadeiros no banco da frente foram me amolecendo. Entrefechei os olhos e fiquei pensando, suave, na professorinha. Não havia podido distinguir direito os traços da cara dela, deveria ser realmente muito bonita, gordinha, eu só sabia do riso branco de belos dentes. O cabelo dela era louro e eu escarafunchei minhas lembranças catando uma certeira comparação. Mas só me vinham as imagens das coxas dela, brancas, rijas, de pegar e morder como cana madura. E eu fiquei cochilando, pescando meus lambaris, enquanto ia mordendo, mordiscando leve e leve as macias coxas da professorinha que corrigia os cadernos lá no banco da frente.
            De repente o ônibus reduziu a marcha e começou a parar. Abri os olhos meio desperto, procurando saber quem descia ou entrava. Quando parou de todo, à margem da estrada, a professora levantou-se sorrindo, falando um até amanhã ao motorista e olhando pela janela, decerto esperando alguns de seus aluninhos. Eu fiquei inteiramente acordado. Ela levantou-se, saiu meio de lado, puxando o vestido. Parou um instante no degrau superior da porta e eu notei que sua bunda bem feita estava na altura dos olhos do negro que disfarçava e olhava pela janela, interessado em qualquer coisa lá fora. Ela desceu. Deu um novo até logo ao motorista e saiu das minhas vistas. O ônibus ia arrancando, a porta ainda aberta, o negro levantou-se precipitado, falou ao motorista um balbucio, entregou a passagem, pegou um pacote que colocara no porta-volume em cima do banco e desceu apressado.
            A porta fechou chiando seu ar comprimido e eu tive uma certeza. Como um relâmpago, como um tiro, como um tombo. Esse negro ia fazer das suas e a professorinha era que era. Pensei em falar mas detive-me uns momentos. O ônibus principiava a retomar sua velocidade de sempre, as pessoas todas estavam quietas, com preguiça de conversar. Eu fiz meus pesos e medidas, meus próprios julgamentos e achei que não podia me omitir. Eu sempre fui eu, obedecedor, dentro das leis, no rigor de todos os preceitos. Eu sabia uma certeza e não podia acovardar-me, deixar que passasse.
            Acordei meu vizinho de banco e falei com ele o que eu estava pensando. Seu olho sozinho me olhou sério e senti que ele concordava comigo. Resolvi agir. Levantei-me e fui ao motorista. Falei, expliquei, contei, informei. Ele me olhou espantado. Não pareceu acreditar muito mas senti uma leve onda de preocupação tomar conta da cara dele. Insisti, altas vozes e os dois boiadeiros já estavam interessados. Repeti a história, contei do negro, os olhos nas coxas, a pressa de descer. Eles entenderam e acreditaram na hora. O velho, meu parceiro de assento, estava falando com o casal do banco de trás e pude ver que o homem concordava e a mulher abriu sua cara de susto, a mão na frente da boca. A velha gorda que vinha dividindo o banco com o negro escutava a conversa e não demorou a intervir. De repente muita gente falava e todos acusavam, diziam, todos tinham suas certezas. O motorista parou o ônibus. O cobrador, que dormia lá no fundo, veio depressa saber o que estava havendo. Um dos boiadeiros começou a explicar, eu completei o caso. O cobrador abaixou-se e pegou uma barra de ferro que estava debaixo do banco do motorista. Nessa altura todos os homens do ônibus tinham vindo para a frente. As mulheres esticavam o pescoço e ficavam caladas, ansiosas para descobrir as causas do transtorno, os porquês do ônibus parado, da viagem interrompida.
            Eu já sabia o que nos competia fazer, a nós homens decentes e civilizados, com um pingo que fosse de moral. Aí eu sugeri que voltássemos, que fôssemos depressa, a professorinha em perigo, o negro nojento. Voltássemos e queira Deus se não seria tarde demais, tudo consumado. O motorista ainda estava indeciso. Tinha suas ordens, o horário a cumprir. O cobrador agitava a barra de ferro. Um dos boiadeiros insistiu em voltar. Eu achei que estava até passando da hora, se demorássemos mais íamos somente voltar para vinganças. Recontei todos os movimentos do negro, os olhares, as brancas coxas da professora, as escuras unhas de gretas, o pé descalço, o dinheiro amarrotado na palma da mão, o beiço roxo, os olhos riscados de vermelho, o calombo na cara. Insisti, tinham que acreditar, decidir logo, meu companheiro de banco que confirmasse. Ele fez que sim com a cabeça, silencioso. Eu já não tinha mais argumento nenhum e isso me afogava, me deixava impotente, o negro, a professora, as coxas rijas, o rosto gordinho. Aí então me encheu o saco e eu resolvi comandar. Mandei virar o ônibus e voltar. O motorista, meio assustado me obedeceu, enquanto todos os passageiros aprovavam e em suas caras ia-se formando o ódio.
            O ônibus voltava rápido, a paisagem sendo apenas largas manchas coloridas dentro dos barulhos da tarde. Estávamos quase todos de pé, dentro do ônibus que corria, cada um se preparando do seu modo para as coisas que iam acontecer. O cobrador ia batendo devagar o pedaço de ferro no cano niquelado que era parte do encosto do banco e fazia um fraco ruído metálico, enquanto pedacinhos do prateado ficavam grudados no ferro. O motorista fazia curvas e curvas, a poeira levantando, vermelha e morna. De repente, depois de um bosque de eucaliptos apareceu a escola, branca e pequena, no começo do morro. O ônibus diminuiu a marcha e todos nós fomos olhando, lado e lado, esquerda, direita. repassando touceiras, escarafunchando sombras, os ouvidos prontos para o grito. O cobrador abriu a porta e pendurou-se para fora, o ferro na mão, procurando ver melhor.
            Então ele viu o negro que caminhava devagar pelo lado da estrada. Gritou. Eu gritei também, o desgraçado decerto já fizera o malfeito, ia fugir. Mandei o motorista tocar pra cima do negro. Ele viu o ônibus vindo, vindo, procurou desviar-se assustado, atravessou correndo a estrada e começou a subir um barranquinho que ia dar nos fundos da escola. O ônibus encostava no barranco quando o cobrador, os dois boiadeiros, outros homens e eu descemos correndo, as mulheres gritando e vindo atrás. Então eu vi quando pegaram o negro, foi o cobrador que alcançou primeiro e bateu nas pernas, o negro caiu e deixou rolar o pacotinho de roupas. Gritou e caiu, apavorado, acuado, meio trepado no barranco, enquanto todos começavam a espancar com os pés, as mãos, paus e pedras e o negro gritava, gritava, gritava.
            E gritava ainda quando a professora surgiu em cima do barranco, fresca em seu vestido branco, vindo da escola, de mãos dadas com uma meninazinha pequena. E gritava enquanto eu pude ver nos claros olhos dela uma intensa surpresa por encontrar ali o ônibus parado e aquele feroz grupo de homens que batiam, batiam, batiam até matar.
(CARVALHO, Murilo. Eu, um homem correto. In: Raízes da morte. São Paulo: Ática, 1977. pp. 58-69).

TEXTO II

“Se os homens menstruassem”
Por Gloria Steinem

            Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mundo passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele branca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.
            Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pênis. O poder de dar à luz faz a “inveja do útero” mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis.
            Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ainda ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: “Vocês deveriam estar orgulhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!”
            Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de alguma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo “superior” será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo “inferior” será usado para justificar suas provações. Homens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulheres eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais “fracas’. Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, “Que nada, isso é trabalho de mulher.” A lógica nada tem a ver com a opressão.
            Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não?
            Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino:
            Os homens se gabariam da duração e do volume.
            Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.
            Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os poderosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do coração, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegidos e muito a respeito das cólicas menstruais.
            Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath — “Para aqueles dias de fluxo leve”.
            As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquistam um maior numero de medalhas olímpicas.
            Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos citariam a menstruação (“men-struação”, de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha (“Você precisa dar seu sangue para tirar sangue”), ocupariam os mais altos cargos (“Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?”), ser padres, pastores, o Próprio Deus (“Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados”), ou rabinos (“Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas”).
            Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mulher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supremacia dos direitos menstruais (“O resto não passa de uma questão”) ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês (“Você precisa dar seu sangue pela revolução”).
            O povo da malandragem inventaria novas gírias (“Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez”) e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:
            — Cara, tu tá bonito pacas!
            — É cara, tô de chico!
            Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é “The Fonz”, embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hill Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais, (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de Sangue).
            Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso “naqueles dias”. Diriam que as lésbicas têm medo de sangue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado.
            As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres (“elas podem desmaiar ao verem sangue”).
            É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disciplina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da matemática, ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?
            A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstruação.
            Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato “desses seres” não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.
            E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Podemos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argumentos com um masoquismo valente e sorridente. (‘A Emenda de Igualdade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses : Phyllis Schlafy. “O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!”: Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da “inveja menstrual”. As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. (“Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!”) As feministas culturais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatura. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalismo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens-truariam. (“Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia”, explicariam, “é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo.”)
            Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tornam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.*
            A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.
            Se permitíssemos.
— 1978
* Meus agradecimentos a Stan Pottinger pelos muitos improvisos incluídos neste texto.
FONTE:
STEINEM, Gloria. Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher no século XX. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 416-419.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Oportunidades oferecidas pela UnB : aproveitem!

Queridos estudantes, a UnB é pública e repleta de espaços físicos e simbólicos que podem ser melhor aproveitados pela nossa comunidade! Segue uma sugestão dentre as inúmeras possibilidades oferecidas por esta instituição. A nossa participação contribuirá para que ela cumpra cada vez mais seu papel social. 
Com carinho encaminho e-mail que recebi:
 Fórum Permanente de Estudantes oferece curso de leitura e produção de textos
São 400 vagas e as aulas serão gratuitas. Inscrições podem ser feitas até 16 de outubro pelo site http://www.gie.cespe.unb.br/

Estudantes do ensino médio que desejam aperfeiçoar a competência linguística de ler, interpretar e produzir textos podem frequentar aulas, gratuitas, do curso Leitura e Produção de Textos do Fórum Permanente de Estudantes do Cespe/UnB. As inscrições já estão abertas e devem ser realizadas até o dia 16 de outubro. O curso oferece 400 vagas.
Serão realizadas 30 horas-aula, aos sábados, nos dias 16, 23 e 30 de outubro e 13, 20 e 27 de novembro, no Instituto Central de Ciências - Ala Sul do Campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB).
A proposta de realização do curso, cuja programação é da Gerência de Interação Educacional do Cespe/UnB, é preparar o aluno do ensino médio para exames e provas de seleção, desenvolvendo a capacidade de leitura e produção de textos com vistas ao seu futuro profissional.
Mais informações podem ser obtidas pelos telefones 2109-5850/5854/5855 ou pelo endereço eletrônico fpprofessores@cespe.unb.br.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Textos prova interdisciplinar 3 ano - Tema: Crise de Paradigma - 3 bimestre

TEXTO I
Vida: viver a crise de paradigmas
Reconhecer a falência de nossas certezas é tomar consciência da crise paradigmática que vivemos. Nossos parâmetros de verdade – aqueles de nossos pais – não são os mesmos e não conseguimos mais agir como nossos pais, como pensava o músico e poeta. Somente a tomada de consciência da crise pode nos libertar do jugo do eterno fracasso de nossas tentativas e erros repetidos, por teimar em ajustar nossos saberes mofados à nossa vida teórico-prática. É preciso voltar a ser a criança dos por quês. Como diz Santos, em Um discurso sobre as ciências, é preciso fazer as perguntas simples de Rousseau, embora nossas respostas já não sejam tão simples. Mas precisam ser outras.
Quem sabe não seria bom sentarmos com velhos e crianças para discutir nosso futuro juntos, respeitando todas as vozes, sem o compromisso com o paradigma dominante, mas com o resgate do humanismo perdido? Enquanto não ficar mais claro para nós que nossa insistência em estabelecer um o que fazer, baseado em uma confiança epistemológica e metodológica modernas, plantadas pela razão matemática – e não estamos falando que se deva esquecê-la –, inviabiliza-se um como fazer: outro, que não precisará ser dito, como era feito na modernidade, mas criado a cada contexto pelos participantes dos problemas a serem solucionados. Daí a necessidade do ensino desenvolver a capacidade crítica e criativa.
Os novos o que fazer e como fazer serão locais e organizados por seus participantes, e devem ser registrados para diálogos globais. Decididamente descobrimos que a vida não vem com manual. A vida é uma permanente crise, construída de conflitos e imprevistos. Para vivê-la precisamos estar atentos todos os dias, sem esquecer nossa caminhada. Nossas convicções são limitadas e devem estar conscientes disso sem pesares. Daí que a solidariedade passa a ser nossa única saída, porque fazemos parte de uma mesma vida (Gaia). Morin e Kern vão dizer:
“... a Terra não é a adição de um planeta físico, mais a biosfera, mais a humanidade. A Terra é uma totalidade complexa física/biológica/antropológica, na qual a vida é uma emergência da história da Terra e o homem uma emergência da história da vida terrestre. A relação do homem com a natureza não pode ser concebida de forma redutora nem de forma separada. A humanidade é uma entidade planetária e biosférica. O ser humano, ao mesmo tempo natural e sobre-natural, tem sua origem na natureza viva e física, mas emerge dela e se distingue dela pela cultura, o pensamento e a consciência.” ( 2000:167)
A vida cotidiana nos chama a reformar nosso pensamento muito mais do que as reflexões de nossos pensadores, que fizeram isto antes de nós. O reducionismo científico que ajudou a produzir esta cultura, entendida como civilizada, desaponta nossos sonhos relutantes de um mundo melhor. Somos levados a crer que já está exposto o reconhecimento de que a dicotomia criada entre o senso comum e o senso crítico começa a diluir-se.

Por VIRGÍNIA MACHADO          
Professora do Departamento de Educação da Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Pedagoga (FURG) e Mestre em Educação (UFRGS)


TEXTO II
O Conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector, mais uma vez traz à tona a ótica peculiar da autora sobre a vida, o amor  e sobre Deus. Uma perspectiva que rompe com todas as estruturas quase que ‘solidificadas’ do leitor, lançando-o à aventura de se conhecer ou reconhecer. Já não há mais certezas, porém o que importa é a procura. Leia o fragmento abaixo, retirado esse conto e, depois, responda às questões.....
 
                    PERDOANDO DEUS (fragmento) Clarice Lispector
 (...)Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. (...)
TEXTO III
“A própria evolução da história ultrapassa, hoje, a capacidade que tem os homens de se orientarem de acordo com valores que amam. E quais são esses valores? Mesmo quando não são tomados de pânico, eles vêm, com freqüência, que as velhas maneiras de pensar e sentir entraram em colapso, e que as formas incipientes são ambíguas até o ponto de estase moral. Será de espantar que os homens comuns sintam sua incapacidade de enfrentar os horizontes mais extensos à frente dos quais foram tão subitamente colocados? Que não possam compreender o sentido de sua época e de suas próprias vidas? Que – em defesa do eu – se tornem moralmente insensíveis, tentando permanecer como seres totalmente particulares? Será de espantar que se tornem possuídos de uma sensação de encurralamento?
            Não é apenas de informação que precisam – nesta Idade do Fato, a informação lhes domina com freqüência a atenção e esmaga a capacidade de assimilá-la. Não é apenas da habilidade da razão que precisam – embora sua luta para conquistá-la com freqüência lhes esgote a limitada energia moral.
            O que precisam, e o que sentem precisar, é uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. É essa qualidade, afirmo, que jornalistas professores, artistas e públicos, cientistas e editores estão começando a esperar daquilo que poderemos chamar de imaginação sociológica.”

A Imaginação Sociológica de Wright Mills 1959, EUA

sábado, 18 de setembro de 2010

Textos prova interdisciplinar 2 ano - Tema: Séc. XIX e seu legado - 3 bimestre

TEXTO I

Quando a preocupação com a vida social emergiu, as bases da vida em sociedade se modificaram radicalmente na Europa. O capitalismo se constituía como modo de produção a partir do surgimento de uma nova classe social – a burguesia – promotora das grandes revoluções modernas. A vida urbana se tornava uma característica dominante no mundo, submetendo o mundo rural, assim como a indústria subordinava a agricultura aos seus interesses.
Um expansionismo sem precedentes punha em contato direto – de forma irreversível e abrangente – as mais distantes e diferentes populações do mundo, lançando as bases daquele fenômeno que chamamos hoje de globalização. Enquanto isso, a organização dos povos sob a forma de estados nacionais se universalizava.
No campo das idéias, a pesquisa científica e as descobertas tecnológicas tornavam-se uma meta cultural e social da maior importância. O individualismo emergia como valor essencial de identidade humana, relegando a segundo plano outras formas de identidade, como a família, o clã e a linguagem. Pragmatismo, imediatismo e individualismo transformam-se e princípios universais e até em dogmas religiosos.
Ao lado de instituições que se universalizavam, desenvolvesse a idéia de que a humanidade é um todo que pode ser reunido num único processo histórico universal e globalizante. Surgem para explicar esse processo as mais diversas teorias da evolução histórica da humanidade.
Todos esses elementos que compõem o que podemos chamar de civilização ocidental despontam de forma mais nítida na Idade Moderna e passam a constituir, no século XIX, o objeto da sociologia, o que faz dela a ciência da modernidade.
(Trecho retirado do livro: Sociologia –  Introdução à ciência da sociedade – autora Cristina Costa - pg 296)
TEXTO II

FRAGMENTO DA OBRA ‘QUINCAS BORBA’ DE MACHADO DE ASSIS
TEORIA HUMANITISTA DE  QUINCAS BORBA
  • "– Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência de outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas." [Síntese do Humanitismo feita por Quincas a Rubião] cap. 6
  De forma bastante resumida, a frase significa que os vencedores podem desfrutar das batatas nos campos de guerra, simplificando ao máximo o Humanitismo e seu preceito básico de que, na luta pela sobrevivência, quem vence é o mais forte. Conforme a professora Ana Maria Lisboa Mello, "a teoria do Humanitismo é pessimista e aponta para o absurdo da existência, opondo-se à filosofia do Humanismo, que valoriza o homem, colocando-o no centro de tudo".


TEXTO III
Visões de mundo, visões da natureza e a formação de paradigmas geográficos
Breves comentários sobre continuidades e mudanças no pensamento ocidental e na geografia moderna (séculos XIX e XX)

As relações entre contexto material, visões de mundo e visões da natureza presentes na geografia histórica ocidental até o século XVIII continuaram manifestando-se ao longo dos séculos subseqüentes. O século XIX caracterizou-se pela continuada ampliação do território sob a hegemonia capitalista, para garantir mercados e matérias-primas para as indústrias que se expandiam, mantendo-se ainda traços do colonialismo. A concentração e a centralização de capitais, bem como a emergência de crises, foram tendências que se particularizaram nesse século. Enquanto o capitalismo se expandia, o ideário do progresso e da evolução da humanidade, baseado no desenvolvimento da ciência e nos ganhos de um processo produtivo que se ampliava, servia de base ao pensamento da modernidade.
Na filosofia moderna do século XIX, manteve-se a dualidade entre tendências racionalistas e idealistas. Na linha racionalista, a principal corrente foi o positivismo, particularmente em sua forma evolucionista. O marxismo, surgido nessa época, influenciaria o pensamento do século seguinte. Na linha do idealismo, pode-se encontrar a filosofia da natureza, o romantismo, a hermenêutica e a fenomenologia. Também nessa época, começavam a se formular proposições que viriam a compor o ideário existencialista.
Próximo ao final do século XIX, como observam os autores espanhóis Josefina Gómez Mendoza, Julio Muñoz Jimenez e Nicolas Ortega Cantero, a racionalidade científica do modelo evolucionista entrou em crise. Esse sistema apresentava uma visão linear da evolução das sociedades, assumindo que o crescimento e o progresso se dariam de forma geral.  
            No entanto, evidências contrárias passaram a desafiar esses pressupostos, colocando em questão todo o paradigma.  As visões de natureza da época refletiam os pressupostos que serviam de base aos sistemas teóricos predominantes. Do racionalismo, vieram as idéias de separação entre sujeito e objeto e a visão da natureza como externa da natureza, internalizadas e revistas pelo positivismo. A visão determinista do século XVIII, da natureza como uma grande cadeia e da sociedade como parte dessa cadeia, seguiu as mudanças na filosofia e na ciência. O positivismo evolucionista via a lógica da natureza na dinâmica social, porém tendo o todo adquirido a forma de um grande sistema.
O marxismo, que privilegiava as relações materiais como base explicativa das mudanças sociais, via aspectos dialéticos na natureza, sendo esta concomitantemente condição e parte integrante do processo de reprodução social. Enquanto no processo de trabalho e nas relações de produção o ambiente influenciaria a sociedade, a sociedade, ao se desenvolver, progressivamente transformaria a natureza.
Nas correntes idealistas, haveria uma tendência a ver a natureza como dotada de autonomia, ligada à idéia de todo, conforme observa Gomes ao referir-se à filosofia da natureza (Gomes, 1996, p. 95-96). As variadas visões de mundo, combinadas a visões sobre a natureza ao longo do século XIX, exerceram influência fundamental sobre o pensamento geográfico da época, que foi objeto de sistematização científica.   Em seguida, desenvolveu-se um pensamento geográfico que enfatizou o determinismo ambiental e o positivismo evolucionista.
As dualidades presentes nas principais linhas de pensamento com relação à natureza também se refletiram na geografia. Por um lado, o racionalismo privilegiava a separação entre sujeito e objeto e a visão de uma natureza externa à sociedade e à cultura; por outro lado, as correntes idealistas tendiam a ver a natureza como espiritualizada e identificada com a totalidade. A geografia do século XX também manteve essas dualidades.

Lúcia Cony Faria Cidade
Professora do Departamento de Geografia do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade de Brasília e do Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS/UnB.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – NEUR/CEAM/UnB.
Correio eletrônico: cony@unb.br