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dedico-me à troca de pensamentos como às pessoas que amo



terça-feira, 21 de abril de 2015

Textos iniciais

SOCIOLOGIA: Shirlei Daudt
TEXTO DE PAULO FREIRE – 
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO ATO DE ESTUDAR
Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia, em si mesma, não é capaz de desfiá-los, se frustra então, a intenção fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Esta intenção de quem faz a bibliografia lhe exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere deve saber  o que está sugerindo e por que o faz. Quem recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não a lê-los por alto, como se folheasse, apenas.
Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura critica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação se deslocam para outras situações. O que se lhes pede afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas a sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda.
Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ela se dedica:
a)      Que assuma o papel de sujeito deste ato
Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se pões em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticadamente”, procurando apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixar “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchido pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa do sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim á sua atitude crítica em face dele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude do adentramento com a qual se vá alcançado  a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quanto, na medida em que dele se tenha uma visão global, e ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que em interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreender todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao quadro referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então de fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim trair o pensamento do autor em sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-se em uma ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outras que lhe possam aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.
b)      Que o ato de estudar no fundo, é uma atitude em frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de SUS autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e, sobretudo pensar a prática, e pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade em suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa: a de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, o que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O Registro das idéias que se tem e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”.
Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem os registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas idéias os remetem a leituras de texto com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.
C) Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia a que se refere o tema ou ao objeto de sua inquietude.
d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção de condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.
e) Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, às vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.

Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.


             
CAPÍTULO 1 – A Promessa


 
“ A Imaginação Sociológica” de Wright Mills, 1959, Universidade de Osford – EUA.

 
              Hoje em dia, os homens sentem, frequentemente, suas vidas privadas como uma série de armadilhas. Percebem que dentro dos mundos cotidianos, não podem superar suas preocupações, e quase sempre têm razão nesse sentimento: tudo aquilo de que os homens comuns têm consciência direta e tudo o que tentam fazer está limitado pelas órbitas privadas em que vivem. Sua visão, sua capacidade, estão limitadas pelo cenário próximo: o emprego, a família os vizinhos, e permanecem espectadores. E quanto mais consciência têm, mesmo vagamente, das ambições e ameaças que transcendem seus cenários imediatos, mais encurralados parecem sentir-se.
              Subjacentes a essa sensação de estar encurralados estão mudanças aparentemente impessoais na estrutura mesma de sociedades e que se estendem por continentes inteiros. As realidades da história contemporânea constituem também realidades para o êxito e o fracasso de homens e mulheres, individualmente. Quando uma sociedade se industrializa, o camponês se transforma em trabalhador; o senhor feudal desaparece, ou passa a ser homem de negócios. Quando as classes ascendem ou caem, o homem tem emprego ou fica desempregado; quando a taxa de investimento se eleva ou desce, o homem se entusiasma, ou se desanima. Quando há guerras, o corretor de seguros se transforma no lançador de foguetes; o caixeiro de loja, em homem do radar; a mulher vive só, a criança cresce sem pai. A vida do indivíduo e a história da sociedade não podem ser compreendidas sem compreendermos essas alternativas.
              E apesar disso, os homens não definem, habitualmente, suas ansiedades em termos de transformação histórica e contradição institucional. O bem estar que desfrutam, não o atribuem habitualmente aos grandes altos e baixos das sociedades em que vivem. Raramente têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial; por isso, os homens comuns não sabem, quase sempre, o que essa ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e para o tipo de evolução histórica de que podem participar. Não dispõem da qualidade intelectual básica para sentir o jogo que se processa entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo. Não podem enfrentar suas preocupações pessoais de modo a controlar sempre as transformações estruturais que habitualmente estão atrás deles.
               Isto não causa surpresa. Em que período da história tantos homens estiveram tão expostos, e de forma tão total, a transformações tão rápidas e completas? O fato de não terem os americanos conhecido modificações tão catastróficas quanto homens e mulheres de outras sociedades se deve a fatos históricas que se estão tornando, rapidamente “apenas história”. A história que atinge todo homem, hoje, é a história mundial. Dentro deste cenário e deste período, no curso de uma única geração, um sexto da humanidade passou de tudo o que era feudal e atrasado para tudo o que é moderno, avançado, terrível. As colônias políticas estão libertadas; instalaram-se novas formas de imperialismos, menos evidentes. Ocorrem revoluções; os homens sentem de perto a pressão de novos tipos de autoridade. Surgem sociedades totalitárias, e são esmagadas desfazendo-se em pedaços – ou obtêm êxito fabuloso. Depois de dois séculos de ascendência, o capitalismo é visto apenas como um processo de transformar a sociedade num aparato industrial. Depois de dois séculos de esperanças, até mesmo a democracia forma está limitada a uma pequena parcela da humanidade. Em todo o mundo subdesenvolvido, os velhos modos de vida se rompem e esperanças antes vagas se transformam em exigências prementes. Em todo o mundo superdesenvolvido, os meios da autoridade e violência tornam-se totais no alcance e burocráticos na forma. A própria humanidade se desdobra hoje à nossa frente, concentrando cada supernação, em seu respectivo pólo, seus esforços coordenados e maciços na preparação da Terceira Guerra mundial.
               A própria evolução da história ultrapassa, hoje, a capacidade que tem os homens de se orientarem de acordo com valores que amam. E quais são esses valores? Mesmo quando não são tomados de pânico, eles vêm, com freqüência, que as velhas maneiras de pensar e sentir entraram em colapso, e que as formas incipientes são ambíguas até o ponto de estase moral. Será de espantar que os homens comuns sintam sua incapacidade de enfrentar os horizontes mais extensos à frente dos quais foram tão subitamente colocados? Que não possam compreender o sentido de sua época e de suas próprias vidas? Que – em defesa do eu – se tornem moralmente insensíveis, tentando permanecer como seres totalmente particulares? Será de espantar que se tornem possuídos de uma sensação de encurralamento?
               Não é apenas de informação que precisam – nesta Idade do Fato, a informação lhes domina com freqüência a atenção e esmaga a capacidade de assimilá-la. Não é apenas da habilidade da razão que precisam – embora sua luta para conquistá-la com freqüência lhes esgote a limitada energia moral.
               O que precisam, e o que sentem precisar, é uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. É essa qualidade, afirmo, que jornalistas professores, artistas e públicos, cientistas e editores estão começando a esperar daquilo que poderemos chamar de imaginação sociológica.
               1.
 A imaginação sociológica capacita seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os indivíduos, na agitação de sua experiência diária, adquirem frequentemente uma consciência falsa de suas posições sociais. Dentro dessa agitação, busca-se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estrutura são formuladas as psicologias de diferentes homens e mulheres. Através disso, a ansiedade pessoal dos indivíduos é focalizada sobre fatos explícitos e a indiferença do público se transforma em participação nas questões públicas.
               O primeiro fruto dessa imaginação – e a primeira lição da ciência social que a incorpora – é a idéia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período; só pode conhecer suas possibilidades na vida tornando-se cônscio das possibilidades de todas as pessoas, nas mesmas circunstâncias em que ele. Sob muitos aspectos, é uma lição temível; sob muitos outros, magnífica. (...)

Questões
1-       Qual a causa social para o sentimento de encurralamento?
2-       O que é Imaginação Sociológica e qual a sua promessa?
3-       Qual a relação entre o texto Imaginação sociológica e os filmes Estamira e Holismo?