Vamos lá!

Acredito em um livro como creio nos sonhos ,

dedico-me à troca de pensamentos como às pessoas que amo



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Textos 4 bimestre 2010 - todas as turmas

Queridos estudantes,
abaixo seguem 2 textos para serem comentados por vocês. O primeiro trata-se mais da questão dos preconceito de classe e de cor. O segundo é uma brincadeira sobre os discursos construídos acerca dos sexos. ´Discutiremos estes textos nas próximas aulas, relacionando com os eventos que aconteceram na escola, os filmes exibidos e os seguintes tópicos para cada série:
1 ANO: preconceito, violência, tolerância sócio-cultural, perspectivas sócio-culturais diversas.
2 ANO: preconceito de classe, raça e gênero, legado sócio-histórico, ideologia, contra-ideologia, discursos reproduzidos pela indústria cultural.
3 ANO: voz sequestrada X movimentos sociais. Os discursos como instrumentos de poder. Tradição discursiva-política brasileira legado e transformações.
TEXTO 1 -
Eu, Homem Correto
            Acabei de escovar os dentes e enxagüei, bem enxaguada, a boca. Coloquei a escova e a pasta dental na mala e puxei o zíper. Conferi: tudo em ordem. Os documentos no bolso interno esquerdo do paletó, o pente no direito e no bolso detrás da calça, a carteira com dinheiro. Um bolso com botão bem resistente, que abotoa sobre uma casa pequena, quase pequena demais para ele: difícil de abotoar e mais difícil ainda de desabotoar. O chaveiro, bem preso na presilha da calça, debaixo da cinta e enfiado no bolsinho dos níqueis. Os sapatos bem amarrados. Olhei: faltava um tanto de graxa neles. E brilho. Detesto andar de sapatos sujos. Puxei um pedaço da colcha que cobria a cama e lustrei o sapato. A poeira vermelha foi ficando no tecido azulado. O sapato só mais ou menos, para chegar no ponto ainda precisava de graxa e um bom lustro de escova. Na colcha ficara uma mancha escura e avermelhada, mais de palmo, mas não tinha importância, até melhor: desse jeito a dona da pensão era obrigada a mandar lavá-la, ela estava mesmo precisando, malcheirosa.
            Tudo em ordem. Apanhei a maleta, o mostruário e, saí para o corredor. Caminhei até a portaria e não encontrei ninguém. O balcão da recepção estava vazio. Esperei um pouco, cinco minutos talvez, e não apareceu pessoa alguma. Levemente, dei dois tapas sobre a tábua do balcão, esperando despertar a atenção da velha ou de alguma empregadinha. Sobre o balcão, o livro de registro de hóspedes estava aberto e eu li meu nome e notei que nos últimos três dias somente eu fora registrado. Fiquei imaginando que todos os outros hóspedes que encontrei nos corredores e no refeitório eram moradores permanentes, registrados há muito tempo. Bati novamente no balcão enquanto procurava uma campainha, dessas que sempre existem em recepção de hotéis e pensões. Não havia nenhuma. Olhei o relógio. Faltava menos de meia hora para sair o ônibus, se a empresa fosse pontual. Bati novamente, com mais força e só então a velha apareceu no corredor da cozinha, enxugando as mãos num pano de prato. Cumprimentei-a, pedi a conta, paguei. Enquanto saía, levando a mala e o mostruário, notei que ela enfiava o dinheiro no seio. Me desagradou muito aquela pensão sem nem caixa registradora.
            O ponto do ônibus não era longe, só atravessar a praça, defronte à igreja e ficar na porta, do bar. Já havia muita gente ali, esperando. Coloquei a mala e o mostruário no chão, junto à parede. Tirei do bolsinho do paletó a minha passagem, comprada de véspera e conferi o lugar. Número seis, segundo banco atrás do motorista, lado do corredor, onde eu poderia esticar as pernas à vontade, enquanto controlava a estrada, longe da poeira dos últimos lugares. Sempre que a gente se senta um pouco mais atrás, nos ônibus que rodam por estradas de terra, come um poeirão danado. É só o ônibus parar e o pó levanta-se, uma nuvem opaca, e vem por trás, entrando em cada janela aberta, em cada fresta de vidro e sufoca os pulmões da gente. Por isso sempre mantive o meu limpo hábito de reservar sempre o bilhete número seis. Nem tão atrás que empoeire tanto, nem tão à frente que o zoar do motor não deixe a gente dormir.
            Eu havia esquecido o meu guarda-pó de linho que sempre trazia nessas viagens ao interior, quando podia contar com poeira certa, por isso não vestira meu terno completo. Estava com o velho paletó cinza e a calça azul-marinho que usava quando tinha que visitar alguma fazenda, oferecendo meus produtos. A camisa, não houve jeito, era a branca mesmo. Não coloquei gravata, era estragá-la na certeza.
            O ônibus ainda demoraria um pouco a encostar. O dia ia pela sua metade, um pouco além das duas horas. Entrei no bar cheio de gente. A mala e o mostruário pesavam bastante. Coloquei-os no chão e pedi um guaraná e já bebia quando me deu vontade de comer um quindim. Mastiguei devagar.
            Pedi ao rapaz do bar que olhasse pela mala e pelo mostruário e fui ao mictório. A urina demorou a vir. Nas paredes uma porção de frases e versos escritos, frases e versos que eu fiquei lendo enquanto esperava a urina e depois enquanto mijava. Saí e fiquei encostado na porta, palitando os dentes. Não havia nenhum lugar vago nos dois bancos de madeira, cheios de mulheres e suas crianças. Já estava ficando cansado, o palito amolecera e a ponta se abrira num pequeno feixe de farpas macias, quando o ônibus apontou no começo da rua, no fim da praça. Olhei o relógio. Estava na hora, o chofer fora muito bem pontual. Isso me deixou contente, o Brasil progredia mesmo. Cuspi fora o palito, cuspi um pouco do gostinho de madeira que me ficara na boca e me aprumei. As mulheres viram também o ônibus e já se levantavam, barulhentas, chamando os filhos, pondo uma urgência medonha em tudo. O ônibus encostou. Abriu-se a porta com um sonoro chiado que me fez lembrar um peido. O cobrador desceu, moreno, magro e sorridente. Entrou no bar. O motorista saltou em seguida e foi tomar seu cafezinho no balcão. Olhei outra vez minha passagem. Número seis. Reservada. Comprada com bastante antecedência. Deixei que as mulheres com as crianças entrassem antes. O cobrador voltou e começou a guardar as malas. Entreguei-lhe minha maleta e o mostruário. Ele devolveu-me os canhotos do talão de bagagem que colara nelas. Fiquei esperando para ver em qual compartimento ele iria guardá-las. Não queria confusão com minhas malas e podia esperar enquanto os outros passageiros se atropelavam na porta do ônibus, porque eu tinha meu lugar reservado, banco número seis, desde a véspera.
            Fui um dos últimos a entrar e o ônibus não estava cheio.
            Parei um pouquinho na porta, trepado no segundo degrau e cumprimentei o motorista que ajeitava dois pacotes no lado do motor, junto ao banco. Para minha surpresa o chão estava limpo e um cheirinho de creolina indicava que ele fora lavado há pouco tempo. Uma boa empresa de ônibus aquela ali, sem dúvidas nem sombras. Procurei o meu lugar, número seis. No número cinco estava sentado um senhor bem vestido, o terno azul-marinho novo, os cabelos brancos e um curativo sobre o olho esquerdo. Achei que seria um bom companheiro de viagem. Pedi licença e sentei-me na ponta do banco estofado, arregaçando um pouco a calça para que não me surgissem aquelas joelheiras deselegantes que amarrotam o tecido e causam péssima impressão, destruindo os vincos. Uma coisa que eu não suporto são roupas mal passadas, com o vinco torto ou sem vincos. Acomodei-me e enquanto esperava a partida procurei conhecer e me apresentar no meu companheiro de banco. Ele foi muito gentil, pegou-me na mão, apresentou-se. Deixei para mais tarde a conversa que principiávamos a entabular, porque queria examinar os outros passageiros com meu vagar.
            No banco da frente, o primeiro, atrás do motorista, na mesma fileira em que eu estava, dois boiadeiros, as botas cheias de barro, falam em voz baixa, os chapéus descansando no colo. Decerto andavam olhando gado, comprando. Estiquei um pouquinho o pescoço para o lado a fim de ver bem o rosto deles. Os dois estavam com a barba crescida e pareciam cansados. Achei melhor não puxar conversa.
            No primeiro banco do outro lado, aquele que fica sozinho lá na frente, antes da porta, ao lado do motorista, o cobrador mexia com um bloquinho de passagens e ajeitava um pequeno maço de notas miúdas para o troco. Estava muito entretido em sua obrigação para responder a qualquer cumprimento meu.
            Logo depois da porta, ainda do outro lado do ônibus, sentava-se uma velha gorda, junto à janela. Um pouco longe dela, no mesmo banco, um negro.
            Virei-me um pouco e pude notar bem o casal de meia-idade que estava sentado no segundo banco, na minha direção. Pareciam distintos, razoavelmente bem arrumados e olhavam também para fora, dizendo adeus a algumas pessoas.
            Virei o pescoço mais ainda. E vi outro casal, duas mulheres e várias crianças que choramingavam lá atrás, perto da cozinha, aquele banco comprido que é o último do ônibus. Atrás de mim, nos assentos do meu lado foi mais difícil de olhar. Disfarcei, levantei-me e fingi que arranjava um pacote no guarda-volumes de cordinha. Pude ver que apenas três bancos estavam ocupados. E me pareceu que eram ocupados por roceiros, suas mulheres e filhos.
            Sentei-me novamente e olhei o relógio. Estava passando da hora. Fiquei desgostoso. Perguntei ao motorista, com muito jeito, se ia demorar muito para sair. Ele disse que não, só estava esperando a professora, ela já até vinha vindo. Disse que tirava a diferença depois. Comentei com o senhor do meu lado que isso não era direito. Mas fiquei esperando sentado que outra coisa não me competia.
            Não demorou nada e a professora chegou. Muito alegre, sorrindo, esbaforida, chegou correndo e trazia pacote de cadernos nos braços e uma grande bolsa de couro pendurada no ombro. Era muito alegre mesmo. Subiu depressa, o cobrador saiu ligeiro do banco onde estava e cedeu o lugar para ela. O motorista, rindo, cumprimentou-a e deu a partida no ônibus. Devagarzinho fomos deixando a praça, descemos uma rua estreita, passamos em frente ao circo que estava sendo desmontado. A professorinha falava alto, exuberante, e sua voz sobressaía-se até mesmo ao ronco tremido do motor. Eu estava distraído, os olhos andando à toa, quando percebi que o negro do primeiro banco inclinava-se para o lado e procurava olhar melhor a professora. Achei esquisito. Meu companheiro comentou sobre um novo posto de gasolina que estavam construindo na entrada da cidade e eu já podia avistar. Estava mesmo quase pronto e a parede inteiramente azulejada deveria ter custado uma fortuna. O ônibus parou bem na frente do posto e eu pude vê-lo direito. Duas mulheres com suas malas e sacolas entraram. O cobrador estava lá atrás e veio vindo para ajudar, mas o negro levantou rápido, pegou as sacolas e auxiliou as duas mulheres que eram bem velhas e tiveram dificuldade em subir os altos degraus. Enquanto ele ajeitava as bolsas, notei que não desgrudava os olhos da professorinha que voltara-se no banco e falava com uma das velhas, sempre com seus bonitos dentes clareando o sorriso. Compreendi logo que era professora de escolinha rural e que andava sempre naquele ônibus, por isso todos a conheciam tão bem.
            Quando o ônibus entrou na estrada os passageiros conversavam animados, mas a professora começara a corrigir os cadernos com um grosso lápis. Comentei com meu companheiro de banco o interesse do negro pela professora. Ele reprovou comigo, essa gente nunca sabe o seu lugar. Não que ele tivesse preconceitos, corno eu também nunca os tive, mas o negro estava até descalço.
            Uma certa hora a professora ajeitou-se no banco, virando as pernas para fora, encontrando melhor posição para a correção dos cadernos. Com o movimento o vestido subiu um pouco, mostrando até mais em cima, um pedaço deslumbrante de coxas claras. Eram pernas lisas e certas e pareciam rijas como boa madeira de lei. O negro estava de olho. Eu não podia ver-lhe os olhos, mas pude adivinhar muito bem a gula que ia por eles. Meu companheiro de banco entortou o corpo e olhou. Concordou comigo que as pernas eram das melhores, mais gostosas, e que o negro era um sem-vergonha. Logo-logo a professora vai estar mostrando até as calcinhas, desse jeito. E aí o negro enlouquece. Confesso que a vista daquelas pernas me perturbou um pouco, procurei conversar. Os dois boiadeiros do banco da frente estavam dormindo.
            Puxaram a campainha e o ônibus parou. Um casal levantou-se, a mulher com grande dificuldade carregava um bebê envolto em cueiros. O cobrador, parado na porta, deu o troco ao homem e ajudou a senhora a descer. Quando o ônibus recomeçou a andar ele foi cobrando as passagens de banco em banco. Mostrei a minha, reservada com boa antecedência, ele apanhou-a e fez nela dois buraquinhos redondos com seu alicate de picotar. O negro tirou o dinheiro do bolso e pagou, um dinheiro amassado e ensebado, quase a conta certa. Eu fiquei olhando o pé dele: o dedão tinha tinhas unhas pretas e gretadas. Me deu vontade de ver como é que era a mão dele. Demorei um pouco, porque ele sempre mantinha as mãos juntas, enfiadas no meio das pernas. As unhas da mão dele pareciam as unhas do pé. Tão pretas, tão sujas. Falei com meu companheiro de viagem sobre isso, como a gente conhece os outros pelas unhas da mão. Seus hábitos, seu coração. Notei nele uma rápida reação, um movimento ligeiro que tinha a intenção de passar desapercebido, procurando com a ponta dos olhos a ponta dos dedos. As unhas dele estavam cortadas e limpas, eu já havia notado isso, senão não teria comentado. Eu também olhei para as minhas unhas, embora soubesse que elas estavam limpas, lustrosas, curtas e sem cutículas, como sempre.
            O ônibus ia indo. A professorinha continuava corrigindo os cadernos e voltara as pernas para dentro do banco, de forma que já não se podia mais ver suas macias coxas. Comentei isso com o velho senhor e ficamos imaginando o desespero do negro, que perdera seu espetáculo. Eu estava pensando que tinha de engraxar os sapatos logo que chegasse na rodoviária de São Paulo, pois seria muito desagradável aparecer ao Gerente de Vendas com os sapatos empoeirados. Ele era um sujeito muito fino, certamente nunca iria dizer nada, assim direto, assim específico. Ele apenas exigia apresentação impecável e eu achava isso assim muito certo. Mas eu precisava mesmo engraxar os sapatos porque, como as unhas, eles são o melhor espelho do que é um homem.
            Eu estava pensando nisso, o ônibus rodava pela estrada vermelha, quando o negro levantou-se e foi falar qualquer coisa ao motorista. Como ele falou muito baixo eu não pude escutar o que dizia, embora tivesse me concentrado em grandes ouvidos. O que eu pude notar e o meu companheiro de banco notou também quando chamei a atenção dele, foi que o negro falava ao motorista mas tinha os olhos postos na professora que continuava com seu trabalho, apesar dos balanços e sacolejos do ônibus. O motorista respondeu qualquer coisa e o negro sentou-se novamente.
            O balançar e trepidar do ônibus na estrada de terra começou a me enjoar. O asfalto ainda demoraria compridos quilômetros.
            O diabo do negro não parava quieto. De vez em quando levantava-se, as mãos apoiadas nos suportes do guarda-volumes, e olhava para os dois lados da estrada, como se estivesse tentando reconhecer onde o ônibus ia passando. Aí então eu pude vê-lo com calma, analisar bem analisado as feições da cara. dos olhos, da boca. A boca nascia de um beiço grosso, pendente, roxo, e acabava num outro beiço menor, tão curto que quase encostava no nariz. E o nariz era mais chato que o normal dos negros, e bem perto da narina esquerda tinha um calombo avermelhado que me fez lembrar em bernes. Os olhos eram de quem bebe muito, amarelados, estriados de sangue. Um negro muito feio mesmo. Depois ele sentou-se e ficou quieto.
            O calorzinho gostoso do meio da tarde, a modorra suave provocada pelo ronronar do motor e o sono fundo dos dois boiadeiros no banco da frente foram me amolecendo. Entrefechei os olhos e fiquei pensando, suave, na professorinha. Não havia podido distinguir direito os traços da cara dela, deveria ser realmente muito bonita, gordinha, eu só sabia do riso branco de belos dentes. O cabelo dela era louro e eu escarafunchei minhas lembranças catando uma certeira comparação. Mas só me vinham as imagens das coxas dela, brancas, rijas, de pegar e morder como cana madura. E eu fiquei cochilando, pescando meus lambaris, enquanto ia mordendo, mordiscando leve e leve as macias coxas da professorinha que corrigia os cadernos lá no banco da frente.
            De repente o ônibus reduziu a marcha e começou a parar. Abri os olhos meio desperto, procurando saber quem descia ou entrava. Quando parou de todo, à margem da estrada, a professora levantou-se sorrindo, falando um até amanhã ao motorista e olhando pela janela, decerto esperando alguns de seus aluninhos. Eu fiquei inteiramente acordado. Ela levantou-se, saiu meio de lado, puxando o vestido. Parou um instante no degrau superior da porta e eu notei que sua bunda bem feita estava na altura dos olhos do negro que disfarçava e olhava pela janela, interessado em qualquer coisa lá fora. Ela desceu. Deu um novo até logo ao motorista e saiu das minhas vistas. O ônibus ia arrancando, a porta ainda aberta, o negro levantou-se precipitado, falou ao motorista um balbucio, entregou a passagem, pegou um pacote que colocara no porta-volume em cima do banco e desceu apressado.
            A porta fechou chiando seu ar comprimido e eu tive uma certeza. Como um relâmpago, como um tiro, como um tombo. Esse negro ia fazer das suas e a professorinha era que era. Pensei em falar mas detive-me uns momentos. O ônibus principiava a retomar sua velocidade de sempre, as pessoas todas estavam quietas, com preguiça de conversar. Eu fiz meus pesos e medidas, meus próprios julgamentos e achei que não podia me omitir. Eu sempre fui eu, obedecedor, dentro das leis, no rigor de todos os preceitos. Eu sabia uma certeza e não podia acovardar-me, deixar que passasse.
            Acordei meu vizinho de banco e falei com ele o que eu estava pensando. Seu olho sozinho me olhou sério e senti que ele concordava comigo. Resolvi agir. Levantei-me e fui ao motorista. Falei, expliquei, contei, informei. Ele me olhou espantado. Não pareceu acreditar muito mas senti uma leve onda de preocupação tomar conta da cara dele. Insisti, altas vozes e os dois boiadeiros já estavam interessados. Repeti a história, contei do negro, os olhos nas coxas, a pressa de descer. Eles entenderam e acreditaram na hora. O velho, meu parceiro de assento, estava falando com o casal do banco de trás e pude ver que o homem concordava e a mulher abriu sua cara de susto, a mão na frente da boca. A velha gorda que vinha dividindo o banco com o negro escutava a conversa e não demorou a intervir. De repente muita gente falava e todos acusavam, diziam, todos tinham suas certezas. O motorista parou o ônibus. O cobrador, que dormia lá no fundo, veio depressa saber o que estava havendo. Um dos boiadeiros começou a explicar, eu completei o caso. O cobrador abaixou-se e pegou uma barra de ferro que estava debaixo do banco do motorista. Nessa altura todos os homens do ônibus tinham vindo para a frente. As mulheres esticavam o pescoço e ficavam caladas, ansiosas para descobrir as causas do transtorno, os porquês do ônibus parado, da viagem interrompida.
            Eu já sabia o que nos competia fazer, a nós homens decentes e civilizados, com um pingo que fosse de moral. Aí eu sugeri que voltássemos, que fôssemos depressa, a professorinha em perigo, o negro nojento. Voltássemos e queira Deus se não seria tarde demais, tudo consumado. O motorista ainda estava indeciso. Tinha suas ordens, o horário a cumprir. O cobrador agitava a barra de ferro. Um dos boiadeiros insistiu em voltar. Eu achei que estava até passando da hora, se demorássemos mais íamos somente voltar para vinganças. Recontei todos os movimentos do negro, os olhares, as brancas coxas da professora, as escuras unhas de gretas, o pé descalço, o dinheiro amarrotado na palma da mão, o beiço roxo, os olhos riscados de vermelho, o calombo na cara. Insisti, tinham que acreditar, decidir logo, meu companheiro de banco que confirmasse. Ele fez que sim com a cabeça, silencioso. Eu já não tinha mais argumento nenhum e isso me afogava, me deixava impotente, o negro, a professora, as coxas rijas, o rosto gordinho. Aí então me encheu o saco e eu resolvi comandar. Mandei virar o ônibus e voltar. O motorista, meio assustado me obedeceu, enquanto todos os passageiros aprovavam e em suas caras ia-se formando o ódio.
            O ônibus voltava rápido, a paisagem sendo apenas largas manchas coloridas dentro dos barulhos da tarde. Estávamos quase todos de pé, dentro do ônibus que corria, cada um se preparando do seu modo para as coisas que iam acontecer. O cobrador ia batendo devagar o pedaço de ferro no cano niquelado que era parte do encosto do banco e fazia um fraco ruído metálico, enquanto pedacinhos do prateado ficavam grudados no ferro. O motorista fazia curvas e curvas, a poeira levantando, vermelha e morna. De repente, depois de um bosque de eucaliptos apareceu a escola, branca e pequena, no começo do morro. O ônibus diminuiu a marcha e todos nós fomos olhando, lado e lado, esquerda, direita. repassando touceiras, escarafunchando sombras, os ouvidos prontos para o grito. O cobrador abriu a porta e pendurou-se para fora, o ferro na mão, procurando ver melhor.
            Então ele viu o negro que caminhava devagar pelo lado da estrada. Gritou. Eu gritei também, o desgraçado decerto já fizera o malfeito, ia fugir. Mandei o motorista tocar pra cima do negro. Ele viu o ônibus vindo, vindo, procurou desviar-se assustado, atravessou correndo a estrada e começou a subir um barranquinho que ia dar nos fundos da escola. O ônibus encostava no barranco quando o cobrador, os dois boiadeiros, outros homens e eu descemos correndo, as mulheres gritando e vindo atrás. Então eu vi quando pegaram o negro, foi o cobrador que alcançou primeiro e bateu nas pernas, o negro caiu e deixou rolar o pacotinho de roupas. Gritou e caiu, apavorado, acuado, meio trepado no barranco, enquanto todos começavam a espancar com os pés, as mãos, paus e pedras e o negro gritava, gritava, gritava.
            E gritava ainda quando a professora surgiu em cima do barranco, fresca em seu vestido branco, vindo da escola, de mãos dadas com uma meninazinha pequena. E gritava enquanto eu pude ver nos claros olhos dela uma intensa surpresa por encontrar ali o ônibus parado e aquele feroz grupo de homens que batiam, batiam, batiam até matar.
(CARVALHO, Murilo. Eu, um homem correto. In: Raízes da morte. São Paulo: Ática, 1977. pp. 58-69).

TEXTO II

“Se os homens menstruassem”
Por Gloria Steinem

            Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mundo passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele branca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.
            Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pênis. O poder de dar à luz faz a “inveja do útero” mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis.
            Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ainda ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: “Vocês deveriam estar orgulhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!”
            Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de alguma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo “superior” será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo “inferior” será usado para justificar suas provações. Homens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulheres eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais “fracas’. Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, “Que nada, isso é trabalho de mulher.” A lógica nada tem a ver com a opressão.
            Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não?
            Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino:
            Os homens se gabariam da duração e do volume.
            Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.
            Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os poderosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do coração, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegidos e muito a respeito das cólicas menstruais.
            Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath — “Para aqueles dias de fluxo leve”.
            As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquistam um maior numero de medalhas olímpicas.
            Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos citariam a menstruação (“men-struação”, de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha (“Você precisa dar seu sangue para tirar sangue”), ocupariam os mais altos cargos (“Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?”), ser padres, pastores, o Próprio Deus (“Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados”), ou rabinos (“Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas”).
            Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mulher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supremacia dos direitos menstruais (“O resto não passa de uma questão”) ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês (“Você precisa dar seu sangue pela revolução”).
            O povo da malandragem inventaria novas gírias (“Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez”) e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:
            — Cara, tu tá bonito pacas!
            — É cara, tô de chico!
            Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é “The Fonz”, embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hill Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais, (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de Sangue).
            Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso “naqueles dias”. Diriam que as lésbicas têm medo de sangue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado.
            As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres (“elas podem desmaiar ao verem sangue”).
            É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disciplina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da matemática, ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?
            A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstruação.
            Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato “desses seres” não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.
            E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Podemos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argumentos com um masoquismo valente e sorridente. (‘A Emenda de Igualdade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses : Phyllis Schlafy. “O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!”: Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da “inveja menstrual”. As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. (“Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!”) As feministas culturais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatura. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalismo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens-truariam. (“Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia”, explicariam, “é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo.”)
            Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tornam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.*
            A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.
            Se permitíssemos.
— 1978
* Meus agradecimentos a Stan Pottinger pelos muitos improvisos incluídos neste texto.
FONTE:
STEINEM, Gloria. Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher no século XX. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 416-419.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Oportunidades oferecidas pela UnB : aproveitem!

Queridos estudantes, a UnB é pública e repleta de espaços físicos e simbólicos que podem ser melhor aproveitados pela nossa comunidade! Segue uma sugestão dentre as inúmeras possibilidades oferecidas por esta instituição. A nossa participação contribuirá para que ela cumpra cada vez mais seu papel social. 
Com carinho encaminho e-mail que recebi:
 Fórum Permanente de Estudantes oferece curso de leitura e produção de textos
São 400 vagas e as aulas serão gratuitas. Inscrições podem ser feitas até 16 de outubro pelo site http://www.gie.cespe.unb.br/

Estudantes do ensino médio que desejam aperfeiçoar a competência linguística de ler, interpretar e produzir textos podem frequentar aulas, gratuitas, do curso Leitura e Produção de Textos do Fórum Permanente de Estudantes do Cespe/UnB. As inscrições já estão abertas e devem ser realizadas até o dia 16 de outubro. O curso oferece 400 vagas.
Serão realizadas 30 horas-aula, aos sábados, nos dias 16, 23 e 30 de outubro e 13, 20 e 27 de novembro, no Instituto Central de Ciências - Ala Sul do Campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB).
A proposta de realização do curso, cuja programação é da Gerência de Interação Educacional do Cespe/UnB, é preparar o aluno do ensino médio para exames e provas de seleção, desenvolvendo a capacidade de leitura e produção de textos com vistas ao seu futuro profissional.
Mais informações podem ser obtidas pelos telefones 2109-5850/5854/5855 ou pelo endereço eletrônico fpprofessores@cespe.unb.br.